Normalmente, eu teria de falar aqui sobre música, sobre minha formação
como músico e professor, sobre minhas influências, sobre meus trabalhos,
sobre estética…
Mas surgem na minha cabeça tantas coisas mais importantes do que uma
lista das pessoas com quem toquei:
Mais importante é cuidar de dois lindos filhos, fazer guerra de
travesseiros antes do café da manhã, contar estórias antes de dormir
Mais importante é renovar e celebrar todo o dia a parceria com a mulher
mais inspiradora do universo conhecido e desconhecido
Mais importante é passar algumas horas cozinhando para as quinze pessoas
que dividem um mundo
Mais importante é ensaiar com o quarteto solto na segunda-feira, e
terça-feira com o à deriva
Mais importante é ensinar algo a um ouvido interessado; é manter o ouvido
interessado para aprender algo
Mais importante é arriscar
É não deixar a onda te engolir
Mais importante é ver uma muda crescer, é comer um figo da tua própria
figueira, fazer um chá com a cidreira do teu jardim
Mais importante é lavar e estender as roupas das pessoas que você ama
Uma massagem, café na cama
Dormir abraçado
Um bom livro
Uma bela garrafa de vinho
Se, no meio de tudo isto,
Eu puder falar um pouco de música…
Assistindo a um filme, me deparei com essa cena:
Na escada da biblioteca, ele disse:
“musa, fala-me sobre o contador de estórias.
nos confins do mundo, para a criança e o ancião…
revele todos através dele.
com o tempo , meus ouvintes tornaram-se meus leitores
não se sentam mais em círculo, mas sozinhos e um desconhece o outro
sou um velho de voz fraca
mas o canto continua brotando do meu interior.
a boca, ligeiramente aberta repete-o com força e clareza:
liturgia que não exige iniciação
para que se entenda o sentido das palavras e frases.”
Na mesa de globos, observando o sistema solar, ele observou:
“o mundo está mergulhando na penumbra.
mas eu narro, como no início, cantarolando
o que me leva a prosseguir na narração dos problemas atuais
e me preserva para o futuro.”
Na mesa, ele pensou:
“não fico mais, como antes, transitando entre os séculos.
agora só penso num dia após o outro.
meus heróis não são mais guerreiros e os reis,
mas as coisas relativas à paz, tão boa como as demais.
as cebolas secas são tão boas quanto o tronco de árvore que cruza o pântano,
mas até hoje ninguém conseguiu cantar uma epopéia sobre a paz.
que acontece com a paz, que sua inspiração não dura, e que quase não se deixa narrar?
devo desisitir agora?
se eu desisitir, a humanidade perderá seu contador de estórias e,
se ela perder seu contador de estórias,
perderá também seu lado criança.”